sábado, 8 de fevereiro de 2025

MARISA LIZ - Mudar a Canção

 








Marisa Liz
Alex D’Alva
Bárbara Tinoco 
Carlão
Cláudia Pascoal 
Diogo Piçarra 
Iolanda
Luís Trigacheiro 
Neyna 
Paulo de Carvalho
Sara Correia
Simone de Oliveira 

Letra: Marisa Liz, AC Firmino, BATAMATA
Música: Cancioneiro Tradicional, Marisa Liz, BATAMATA




ROBERT DOISNEAU e JOSÉ DE ALMADA NEGREIROS

 


Le beigneur en vitrine 
Paris -1959



A VERDADE

Je ne crois que  les histoires dont les témoins se feraient égorger!
Pensées, Pascal

   Eu tinha chegado tarde à escola. O mestre quis, por força, saber porquê. E eu tive que dizer: Mestre! quando saí de casa tomei um carro para vir mais depressa, mas, por infelicidade, diante do carro caiu um cavalo com um ataque que durou muito tempo. 
   O mestre zangou-se comigo: Não minta! diga a verdade! 
   E eu tive de dizer: Mestre! quando saí de casa... minha mãe tinha um irmão no estrangeiro e, por infelicidade, morreu ontem de repente e nós ficámos de luto carregado. 
   O mestre ainda se zangou mais comigo: Não minta! diga a ver­dade!!
   E eu tive de dizer: Mestre! quando saí de casa... estava a pensar no irmão de minha mãe que está no estrangeiro há tantos anos, sem escrever. Ora isto ainda é pior do que se ele tivesse morrido de repente porque nós não sabemos se estamos de luto carregado ou não.         Então o mestre perdeu a cabeça comigo: Não minta, ouviu? diga a verdade, já lho disse!
   Fiquei muito tempo calado. De repente, não sei o que me pas­sou pela cabeça que acreditei que o mestre queria efectivamente que lhe dissesse a verdade. E, criança como eu era, pus todo o peso do corpo em cima das pontas dos pés, e com o coração à solta con­fessei a verdade: Mestre! antes de chegar à Escola há uma casa que vende bonecas. Na montra estava uma boneca vestida de cor-de­-rosa! Mestre! a boneca estava vestida de cor-de-rosa! A boneca tinha a pele de cera. Como as meninas! A boneca tinha tranças caídas. Como as meninas! A boneca tinha os dedos finos. Como as meninas! Mestre! A boneca tinha os dedos finos...

Escrito em 1921
Publicado em Novembro de 1921



Almada Negreiros 

A invenção do dia claro, III PARTE


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

MARIA TERESA HORTA (1937-2025)

 



Fotografia de ALFREDO CUNHA - AQUI


TEMPO DE LUZES


É um tempo coado
de azevinho
com odores de doce

e de memória

O colo da mãe
em desalinho
a cor da ternura

na demora

É um tempo de luzes
e de linho
com sussurros

de cristal e de romã

Lonjura que nos traz
o som de um sino
onde o sonho se mistura

com a manhã





MORRER DE AMOR

Morrer de amor
ao pé da tua boca

Desfalecer
à pele
do sorriso

Sufocar
de prazer
com o teu corpo

Trocar tudo por ti
se for preciso




VOAMOS

Voamos a lua,
menstruadas

Os homens gritam:
- são as bruxas

As mulheres pensam:
- são os anjos

As crianças dizem:
- são as fadas



AMOR HUMANO

Eu te procurarei 
por entre os astros 
do meu sobressalto
e tudo parecerá perdido 
à minha beira a querer iludir 
séculos de engano
ano após ano
Mas nada será mais belo 
que o nosso amor humano



RESISTÊNCIA

Ninguém me castra a poesia
se debruça e me põe vendas
censura aquilo que escrevo
nem me assombra os poemas

Ninguém me paga os versos
nem amordaça as palavras
na invenção de voar
por entre o sonho e as letras

Ninguém me cala na sombra
deitando fogo aos meus livros
me ameaça no medo
ou me destrói e algema

Ninguém me aquieta a escrita
na criação de si mesma
nem assassina a musa
que dentro de mim se inventa



BASTA
                    
Basta.
— digo —
que se faça
do corpo da mulher:

a praça — a casa
a taça

A ÁGUA

Com que se mata
a sede
do vício e da desgraça




FIM DE DIA DE UMA OPERÁRIA GRÁVIDA

Sente o peso do filho
na barriga
As costas leva curvadas

Nas pernas vê as varizes
Vê as mãos
que traz inchadas

(A casa! Chegar a casa!)

E vai andando apressada: empurrando o corpo
lento
devorado de cansaço
Com um desespero manso e firme a entrar-lhe
pelos braços

(A casa? Chegar a casa?)

E a cama desalinhada?
E a comida por fazer?
E a louça não lavada?

Na fábrica ficou a máquina
na oficina o ruído
a obra já acabada

Mas ainda falta a casa
Com a sua vida a cumprir: .
varrer
panelas
jantar

E a roupa do marido
toda ainda por lavar

(A casa... Chegar a casa…)

A que horas vai poder
deitar-se para dormir?
Num sono de se esquecer…

A que horas vai poder?
Sente o peso do filho
na barriga
As costas leva curvadas

Nas pernas vê as varizes
Vê as mãos
que traz inchadas

(A casa! Chegar a casa!)

E vai andando apressada: empurrando o corpo
lento
devorado de cansaço
Com um desespero manso e firme a entrar-lhe
pelos braços

(A casa? Chegar a casa?)

E a cama desalinhada?
E a comida por fazer?
E a louça não lavada?

Na fábrica ficou a máquina
na oficina o ruído
a obra já acabada

Mas ainda falta a casa
Com a sua vida a cumprir: .
varrer
panelas
jantar

E a roupa do marido
toda ainda por lavar

(A casa... Chegar a casa…)

A que horas vai poder
deitar-se para dormir?
Num sono de se esquecer…

A que horas vai poder?



ENQUANTO CALAS

Enquanto calas
dobas o medo
que te cresce na fala

E a solidão bordas
a ponto de silêncio




PONTO DE HONRA

Desassossego a paixão
espaço aberto nos meus braços
Insubordino o amor
desobedeço e desfaço

Desacerto o meu limite
incendeio o tempo todo
Vou traçando o feminino
tomo rasgo e desatino

Contrario o meu destino
digo oposto do que ouço

Evito o que me ensinaram
invento troco disponho
Recuso ser meu avesso
matando aquilo que sonho

Salto ao eixo da quimera
saio voando no gosto

Sou bruxa
Sou feiticeira
Sou poetisa e desato
Escrevo
e cuspo na fogueira






sábado, 18 de janeiro de 2025

LUÍSA SUPICO - In Memoriam

 

Querida Luísa,

Há muito que não te dizemos nada em voz alta. Mas também sabemos que nada fará esconder o teu sorriso ateado de sinceridade.

A tua alegria de contágio e o teu pendor de frontalidade sempre se afirmaram, sempre nos estimularam. 

Continuar a aprender contigo é uma coragem que não refreamos.

Hoje é um dia maior no teu/nosso janeiro.

Vela por quem amas como sempre fizeste. 

Nós, vamos continuar a folhear as páginas dos dias - como quem reza - à sombra do teu riso. 


15 de janeiro de 2025

José Maria Laura



No dia 31 de agosto de 2019, a Marta escrevia: 

MENSAGEM DEDICADA A TODAS AS VÍTIMAS DO EFEITO SUPICO:

Olá a todos. Espero-vos a todos bem. 

Gostaria da atenção de todos, mas principalmente daqueles que ao longo de muitos anos, tantos como a minha existência, foram vítimas do Efeito Supico nas mesas das salas de aula. 

A vocês, que muitas vezes invejei por todo o tempo que ela vos dedicou, em preparação de aulas, correção de testes ou conversas de recreio. 

Hoje a minha mãe faleceu. Bateu-se estoicamente ao longo de uma guerra dura e da qual desde cedo se sabia quem sairia vencedor. 

Calma! Não se iludam, não venceu mas não se deu por vencida e saiu desta luta a rir-se na cara deste oponente. 

A todos que a quiserem homenagear comecem hoje a ler um livro. Um livro ou um poema, uma notícia, uma peça, uma BD... Mas leiam como confio que ela vos ensinou a ler. 

Este é o último post desta conta que em breve será encerrada. 

Obrigada a todos pelo papel que tiveram na construção do Ser da minha Mãe. 

Marta




Gratos por tão bela partilha.


ANA BACALHAU e CLÁUDIA PASCOAL - Imperial é Fino

 



«Ténis ou sapatilhas? Imperial ou fino? Ana Bacalhau e Cláudia Pascoal cantam as diferenças entre norte e sul

"Imperial é Fino" conta com letra de Capicua.»





Ah e quê?
Ah então?
Ah porquê?
Que algo se perde na nossa tradução?
Ah e quê?
Ah então?
Ah porquê?

Dizes que não tens qualquer sotaque, isto não é um ataque mas tens falta de noção
E depois dizes "para não ser de supresa eu tufono-te às dezóito pa marcar a runião"
Olha quem fala, tu dizes "à minha beira", com pronúncia da Ribeira
Quando estás "ao pé de mim"
Dizes pega em vez de toma, dizes bufa em vez de sopra
Olha a (i)Ana, gola (i)alta e coisa assim

Imperial é fino, ténis é sapatilha
Bica é cimbalino e "chicla" é pastilha
Aloquete é cadeado e capuz, carapuço
Estrugido é refogado, chapéu de chuva é chuço
Se trolha é pedreiro, bueiro é sargeta
Sertã é frigideira e cabide é cruzeta

Ah e quê?
Ah então?
Ah porquê?
Que algo se perde na nossa tradução?
Ah e quê?
Ah então?
Ah porquê?

Já tu dizes "são quaise treuze" e já ouvi várias vezes "tira o téni do sófá"
O lisboeta come letras, tira o U pra dizer pôco, diz "óviste é muita lôco", assim não dá!
Tretas, pra ti mãe tem cinco letras, dizer "cumo" é o cúmulo e tu sabes que assim é
Tu dizes testo e eu tampa, eu digo cocho e tu manco e quando dizes tótil eu bué

Imperial é fino, ténis é sapatilha
Bica é cimbalino e "chicla" é pastilha
Aloquete é cadeado e capuz, carapuço
Estrugido é refogado, chapéu de chuva é chuço
Se trolha é pedreiro, bueiro é sargeta
Sertã é frigideira e cabide é cruzeta

Contigo tão vira tom, contigo são vira som e depois bom vira "bão"
Para mim o V vira B, p'ra ti "Lesboa" é com E, oblá e então?
Ouve, não sou eu que falo torto, toda a gente me entende, não é meu o defeito
S'eu falo à Porto é meu direito e se o teu ouvido é mouco, o meu sotaque é perfeito

Se digo "fala bem", é pra tu seres meiguinha
Como eu sou também, no meu jeito alfacinha
E quando eu digo "bem" eu tou t'a dizer pra "bires"
Eu até te falo bem só é pena não me ouvires
E quando eu digo "bem" eu tou t'a dizer pra "bires"
Eu até te falo bem só é pena não me ouvires

Ah e quê?
Ah então?
Ah porquê?
Que algo se perde na nossa tradução?
Ah e quê?
Ah então?
Ah porquê?



Milhos

 



Claro que a palavra está associada a milho.

Grande parte das aldeias do norte eram muito pobres e totalmente dependentes do milho. O milho era o pão desde o acordar até ao deitar. Muito trabalhoso e exigente também em água de rega. Tudo resultava das encodeadas mãos camponesas. 

Até cerca de 1960, o grão era levado ao munho (moinho) às costas, à cabeça. (Às vezes bem mais que meia hora de caminho duro). Lá, no tremonhado, apanhava-se a farinha e metia-se em foles, sacos artesanais feitos de pele de cabra. Novo percurso até à cozinha onde, cuidadosamente, se elaborava a massa. O forno de lenha devolvia as broas da sobrevivência.

Voltemos ao munho. Quando era preciso, alteava-se um pouco a mó em relação ao pouso. O grão caía na mesma da calheira mas a rotação da mó já não expelia farinha: eram os milhos, o arroz dos pobres. Os milhos eram sempre longamente cozidos ao lume nos tradicionais potes de ferro com três pernas. Coziam só na água. Depois misturavam-se uns bocadinhos de carne de porco, quando havia. Era o arroz dos pobres. A quantidade que não se cozia era cuidadosamente guardada em sacos de tecido. 

Quase todas as tarefas, os cuidados no munho, na cozinha, na masseira e no forno dependiam das calosas, delicadas e dedicadas mãos femininas.

José Maria Silva



Os nossos milhos e tanto carinho resguardados neste saco de pano!
Dezembro de 2024