Quando pela primeira vez escrevi amote
fui repreendida
pela gramática
Não quis saber
Tinha-te mais comigo
Assim numa palavra só
Quando pela primeira vez soletrei
a-mo-te tive medo e com pressa e gula
te comi inteiro te reuni em mim
Quando pela primeira vez
nos começamos a separar respeitei a ortografia e sem dar
por isso separei-te de mim
amo tracinho te
Quando
pela primeira vez nos reunimos soletrei melancolicamente
a-ma-me como quem esbagulha uma romã
Quando
pela última vez me disseste amo tracinho te
tudo
estava certo e solitário
eu separada de ti por um pântano
de ninguém
tu à distância sem mim sem barco
e sem vontade
Esbracejei não me quis conformar
Acenei-te gritei-te de longe Amasme?
numa palavra só
de braços estendidos a lutar contra os ventos separadores
da ortografia e do alto mar
Respondeste gritaste
claro que te amo
te
amo
te
amo
escandiam os ventos e o eco
em duas palavras
separadas
Então entre mim e ti o pântano cresceu
Depois secou
Depois a crosta terrestre desfez-se e refez-se
E houve
Novos mares e continentes e tudo ficou provisoriamente
adulto e definitivo
reconciliado com a geografia e a gramática
eu
tu
solidamente
solidariamente sós
TERESA RITA LOPES
👉A Vida Breve - Programa diário de poesia dita pelos seus autores
Um programa de Luís Caetano - Antena 2
A Mãe
A Mãe
é como a água
é como o pão
Quando há
parece obrigação
nem se agradece
Só agora se solta minha prece
depois da refeição
apenas evocada
Quatro auto-retratos
2
Porque será que meus olhos tanto necessitam
de ver mar ao longe?
Ou pelo menos a água
de um rio
para aí cheirar a sua raiz
Se calhar foi por tanto apetecer o azul
da água ao longe
que meus olhos são claros
e por tanto amar o mar
que meus desgostos
se tornaram destemidos e salgados
e têm
o voo a pique das gaivotas
e o grito ácido
dos pássaros marinhos
Dia a dia
Dia
a
dia
noite
a
noite
pedra
a
pedra
palha
a
palha
a
tronco
a
tronco
cuspo
a
cuspo
gesto
a
gesto
passo
a
passo
flor
a
flor
se faz um ninho
um caminho
Quando te tinha Mãe
Quando te tinha
Mãe
Não sabia
Havia
De te perder
Nem pensava
Sequer
Que podia
Não te ter
Não parava
Para te saborear
Para te saber
Tão precisa
À minha vida
Tão preciosa
Não gozava
A alegria
De te saber
Mãe
Viver em verso
É verdade, Antónia: de tudo faço versos:
é só parar, respirar fundo
as humildes coisas em redor
e deixar que eles me poisem nos ombros.
Desde que gostosamente me recolhi
no claustro dos meus dias
sou como as minhas plantas:
preciso de estar sozinha no meu vaso.
Que as abelhas se encarreguem de as polinizar
e a mim de me fazer
viver em verso.
Dia dos fiéis defuntos
Em menina neste dia dos Fiéis Defuntos
ia com a Mãe e a Tia ao cemitério.
saudar os nossos mortos.
Andávamos de campa em campa
como de casa em casa
a florir-lhes os retratos.
Por mim achava que eles não estavam lá
- e ainda acho.
Mas o cemitério era concorrido como uma feira
e eu gostava de olhar em redor.
Felizmente que os portugueses não fazem como os chineses
que comem ali mesmo com os seus mortos.
Mas no regresso ah sim! compensava-me de tanto luto
empanturrando-me de figos cheios com amêndoas e canela
recém-saídos do forno!
Espero que ainda persista o hábito.
Esse o delicioso paladar que me ficou na lembrança
misturado com o cheiro acre dos crisântemos.
Em menina neste dia dos Fiéis Defuntos
ia com a Mãe e a Tia ao cemitério.
saudar os nossos mortos.
Andávamos de campa em campa
como de casa em casa
a florir-lhes os retratos.
Por mim achava que eles não estavam lá
- e ainda acho.
Mas o cemitério era concorrido como uma feira
e eu gostava de olhar em redor.
Felizmente que os portugueses não fazem como os chineses
que comem ali mesmo com os seus mortos.
Mas no regresso ah sim! compensava-me de tanto luto
empanturrando-me de figos cheios com amêndoas e canela
recém-saídos do forno!
Espero que ainda persista o hábito.
Esse o delicioso paladar que me ficou na lembrança
misturado com o cheiro acre dos crisântemos.
Fecho os olhos, aspiro, saboreio
e assim cumpro hoje o ritual actual
que não inclui a ida ao cemitério
onde sei que os meus mortos não estão:
Tenho-os aqui comigo!
TERESA RITA LOPES
👉TERESA RITA LOPES (1937-2025)
👉TERESA RITA LOPES – UMA PAISAGEM DE MIM
Uma singela homenagem à minha professora de Literatura Portuguesa na Université de la Sorbonne Nouvelle-Paris III (Censier), no início da década de oitenta,
Teresa Rita Lopes.
1980-1981
MÉTHODES DE RECHERCHE EN LITTÉRATURE PORTUGAISE
Les tendances de la prose portugaise contemporaine du "Modernismo" à nos jours
guardo o olhar azul que percrustava a nossa sensibilidade e nos levava até mares longínquos!
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