segunda-feira, 16 de junho de 2025

TERESA RITA LOPES (1937-2025)

 




Amo Tracinho Te

Quando pela primeira vez escrevi amote

fui repreendida

pela gramática

Não quis saber

Tinha-te mais comigo

Assim numa palavra só

Quando pela primeira vez soletrei

a-mo-te tive medo e com pressa e gula

te comi inteiro te reuni em mim

Quando pela primeira vez

nos começamos a separar respeitei a ortografia e sem dar

por isso separei-te de mim

amo tracinho te

Quando

pela primeira vez nos reunimos soletrei melancolicamente

a-ma-me como quem esbagulha uma romã

Quando

pela última vez me disseste amo tracinho te

tudo

estava certo e solitário

eu separada de ti por um pântano

de ninguém

tu à distância sem mim sem barco

e sem vontade

Esbracejei não me quis conformar

Acenei-te gritei-te de longe Amasme?

numa palavra só

de braços estendidos a lutar contra os ventos separadores

da ortografia e do alto mar

Respondeste gritaste

claro que te amo

te

amo

te

amo

escandiam os ventos e o eco

em duas palavras

separadas

Então entre mim e ti o pântano cresceu

Depois secou

Depois a crosta terrestre desfez-se e refez-se

E houve

Novos mares e continentes e tudo ficou provisoriamente

adulto e definitivo

reconciliado com a geografia e a gramática

eu

tu

solidamente

solidariamente sós

TERESA RITA LOPES


👉A Vida Breve - Programa diário de poesia dita pelos seus autores

Um programa de Luís Caetano - Antena 2

AQUI


A Mãe

A Mãe

é como a água

é como o pão


Quando há

parece obrigação

nem se agradece


Só agora se solta minha prece

depois da refeição

apenas evocada


Quatro auto-retratos

2

Porque será que meus olhos tanto necessitam

de ver mar ao longe?

                             Ou pelo menos a água

de um rio

             para aí cheirar a sua raiz

Se calhar foi por tanto apetecer o azul

da água ao longe

                           que meus olhos são claros

e por tanto amar o mar

                           que meus desgostos

se tornaram destemidos e salgados

                                                      e têm

o voo a pique das gaivotas

                                         e o grito ácido

dos pássaros marinhos



Dia a dia


Dia

a

dia

noite

a

noite

pedra

a

pedra

palha

a

palha

a

tronco

a

tronco

cuspo

a

cuspo

gesto

a

gesto

passo

a

passo

flor

a

flor

se faz um ninho

um caminho




Quando te tinha Mãe


Quando te tinha

Mãe

Não sabia

Havia

De te perder

Nem pensava

Sequer

Que podia

Não te ter

Não parava

Para te saborear

Para te saber

Tão precisa

À minha vida

Tão preciosa

Não gozava

A alegria

De te saber

Mãe


Viver em verso

É verdade, Antónia: de tudo faço versos:

é só parar, respirar fundo

as humildes coisas em redor

e deixar que eles me poisem nos ombros.

Desde que gostosamente me recolhi

no claustro dos meus dias

sou como as minhas plantas:

preciso de estar sozinha no meu vaso.

Que as abelhas se encarreguem de as polinizar

e a mim de me fazer

viver em verso.


Dia dos fiéis defuntos

Em menina neste dia dos Fiéis Defuntos

ia com a Mãe e a Tia ao cemitério.

saudar os nossos mortos.

Andávamos de campa em campa

como de casa em casa

a florir-lhes os retratos.

Por mim achava que eles não estavam lá

- e ainda acho.

Mas o cemitério era concorrido como uma feira

e eu gostava de olhar em redor.

Felizmente que os portugueses não fazem como os chineses

que comem ali mesmo com os seus mortos.

Mas no regresso ah sim! compensava-me de tanto luto

empanturrando-me de figos cheios com amêndoas e canela

recém-saídos do forno!

Espero que ainda persista o hábito.

Esse o delicioso paladar que me ficou na lembrança

misturado com o cheiro acre dos crisântemos.

Em menina neste dia dos Fiéis Defuntos

ia com a Mãe e a Tia ao cemitério.

saudar os nossos mortos.

Andávamos de campa em campa

como de casa em casa

a florir-lhes os retratos.

Por mim achava que eles não estavam lá

- e ainda acho.

Mas o cemitério era concorrido como uma feira

e eu gostava de olhar em redor.

Felizmente que os portugueses não fazem como os chineses

que comem ali mesmo com os seus mortos.

Mas no regresso ah sim! compensava-me de tanto luto

empanturrando-me de figos cheios com amêndoas e canela

recém-saídos do forno!

Espero que ainda persista o hábito.

Esse o delicioso paladar que me ficou na lembrança

misturado com o cheiro acre dos crisântemos.

Fecho os olhos, aspiro, saboreio

e assim cumpro hoje o ritual actual

que não inclui a ida ao cemitério

onde sei que os meus mortos não estão:

Tenho-os aqui comigo!


TERESA RITA LOPES




👉TERESA RITA LOPES (1937-2025)

👉TERESA RITA LOPES – UMA PAISAGEM DE MIM



Uma singela homenagem à  minha professora de Literatura Portuguesa na Université de la Sorbonne Nouvelle-Paris III (Censier), no início da década de oitenta, 

Teresa Rita Lopes.


CERTIFICAT D'ÉTUDES SUPÉRIEURES DE MAITRISE
1980-1981
MÉTHODES DE RECHERCHE EN LITTÉRATURE PORTUGAISE
Les tendances de la prose portugaise contemporaine du "Modernismo" à nos jours


Desse tempo,
guardo o olhar azul que percrustava a nossa sensibilidade e nos levava até mares longínquos!

Guardo a paixão das suas palavras, envoltas num discurso tão distante das apresentações cartesianas de outros professores.

Guardo a voz eloquente e calorosa que nos deu a conhecer tantos Pessoas e tantas pessoas! Versos e poetas reencontrados quando ouvíamos embevecidos as suas leituras...

Guardo a sua poesia descoberta mais tarde e que ecoa dolorosamente...

"Fecho os olhos, aspiro, saboreio
e assim cumpro hoje o ritual actual
que não inclui a ida ao cemitério
onde sei que os meus mortos não estão:
Tenho-os aqui comigo!"

15 de junho
Maria Laura


  


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