Na Igreja de Benfica, no dia 23 de junho, tivemos o privilégio de ouvir, acompanhada de poemas do Fernando, esta sentida homenagem pela voz do seu autor.
Ferreira Dias e Noites agradece a António Carlos Cortez e à Família do Fernando esta generosa dádiva que doravante podemos todos partilhar.
(1961-2013)
UM TESTEMUNHO
Para o Fernando.
Para os seus pais, irmãos e sobrinhas.
Aos seus alunos e colegas da Escola Secundária Ferreira Dias
Conheci o Fernando Eduardo Carita em 2001/2002. Foi na
esplanada do café «Nilo». Ou melhor: foi ainda nas antigas mesas do café «Nilo»
e não na esplanada, cá fora, pois não era Primavera, nem Verão, mas um final de
Inverno que anunciava o que viria a ser um belo encontro humano. O Fernando, no
seu porte distinto e discreto, com uma caneta Bic, preta, apontava num pequeno caderno qualquer coisa que, pelo
modo como estava concentrado, deveria ser urgente, belo e necessário. Já há
algum tempo que eu tinha reparado no Fernando. Nesse dia não reprimi a vontade
de o conhecer e levantei-me da minha mesa, onde eu também passava as manhãs de
Sábado a ler ou a não fazer coisa nenhuma, para me dirigir àquela pessoa que –
lembro-me agora – parava de vez em quando de escrever e nos olhava, oblíqua ou
profundamente, regressando, baixando os olhos, à escrita ou à leitura.
Perguntei se me podia sentar e ele, surpreendido mas acolhedor, disse que sim.
Perguntei-lhe se era professor (porque me parecia ter a atitude, a presença dum
professor de facto) e o que estava a ler. Educadíssimo, esmerado, sensível a
quem, jovem e provocatório, assim se lhe dirigia de forma curiosa, disse-me que
estava a ler Poesia Vertical, dum
poeta chamado Roberto Juarroz. Coindidência incrível. Também eu estava a ler,
não a poesia de Juarroz, mas um ensaio de António Ramos Rosa sobre a poesia do
poeta argentino.
Creio que o nosso encontro – e as centenas de encontros que
a esse se seguiram nos doze anos de partilha e cumplicidade – teve o condão da
poesia e da sua luminosa fraternidade. Nesse mesmo dia combinámos novo encontro
e como morávamos perto foi-se estabelecendo um tácito acordo. Aos Sábados, e
pelo menos duas vezes por semana, era certo o café da manhã no «Nilo». À tarde,
após o almoço, novo café, pretexto para desfiar de comversas sobre livros,
ideias, paixões. A urgência de viver. Entre 2001 e 2010/011 eu e o Fernando
perdemos a conta aos jantares e almoços que fizemos... nestes últimos tempos,
por culpa minha, bem menos regulares (talvez quando nos voltarmos a encontrar
possamos, com Juarroz e outros da nossa confraria, retomar esses jantares e
cafés onde a vida irrompia simples, calma e bela nas palavras que
trocávamos...).
O Fernando Eduardo Carita, para além da amizade profunda aos
seus amigos, foi também, para mim, uma espécie de misterioso orientador de
leituras e um cúmplice fazedor de ideias. O Fernando é das pessoas mais cultas
e sensíveis que até hoje conheci. Jamais se envaideceu com a sua cultura, com o
seu transversal saber, que ia da Poesia europeia à Filosofia, da música à
pintura. Bilingue, dominando na perfeição a língua francesa, foi tradutor
exímio do poeta belga Yves Namur. Para além desse seu trabalho como tradutor,
publicou três livros de poesia. O primeiro, em 1988, A Obscura Espiritualidade da Matéria, em edição de autor e, em 2005
e 2008, dois livros: A Salvação pelo
Vazio e A Casa o Caminho, ambos
traduzidos por Marie-Claire Vromans e editados na Taillis Prés. Dum volume que
lhe será póstumo, intitulado O Deus do
Inacabado (será também traduzido por Marie-Claire Vromans e com chancela da
editora de Yves Namur), saíram em Agosto de 2011, no número 177 da revista Colóquio-Letras, dois poemas. Lembro-me
da felicidade e surpresa com que recebeu a notícia dessa publicação. Dava-se a
curiosa coincidência de esse número ser dedicado à «Poesia 61», o ano de
nascimento do Fernando. Com os olhos vivíssimos, o sorriso franco e aberto,
numa voz pausada e forte, ora rápida e incisiva, ora lenta e grave, disse-me:
«António, tu já viste isto?! Então agora já sou um poeta português?...» É que
para o Fernando Eduardo Carita, apesar de as edições dos seus livros serem
bilingues, ele queria, na verdade, que a sua poesia fosse publicada em
português. Numa editora portuguesa. Acontecerá, sem dúvida, por razões óbvias:
a sua obra é, quanto a mim, das mais belas expressões de espiritualidade que a
poesia de língua portuguesa recente produziu. Dar a conhecer o autor de A Salvação pelo Vazio impõe-se.
Fernando Eduardo Carita, professor, poeta, tradutor, foi
alguém com quem partilhei uma fase decisiva do meu crescimento como homem,
também eu professor. É para mim um motivo de alegria ter ido, em três ocasiões,
à escola do Fernando, a Escola Secundária Ferreira Dias, por ele convidado,
falar sobre poesia, sobre Literatura e cultura. Unia-nos uma forte consciência
quanto à urgência da Literatura e da Cultura no ensino do Português. Cáustico,
incisivo, irónico, o Fernando não hesitava em condenar, em invectivar a
mediocridade, o fanatismo, a ignorância... Sempre com elevação, por muito
revoltado que se sentisse em face duma realidade europeia e portuguesa que,
dizia-me, nos iria levar à barbárie da ignorância... Certas frases do Fernando
Eduardo foram, perante o que vivemos, de uma terrível premonição...
Sei o quanto ele amou ser professor. Sei o quanto exigia de
si próprio para que as aulas fossem esse encontro de espíritos com a cultura
viva que, pela mão da poesia e da filosofia, que ele sabia integrar como
poucos, era para ele o fio condutor das relações humanas. Em diversas ocasiões
lhe disse que os seus alunos ganhavam imenso ao ter um professor assim. Eles,
os seus alunos, bem como os seus colegas, sabem disso. Todavia, por ser
discreto e humilde, respondia-me sempre: «Não, António. Quem lhes deve
agradecer sou eu por me darem a oportunidade de estar aqui... Eu é que aprendo
com eles...»
Aos seus pais – Manuela e João -, aos seus irmãos – Filipe e
João Paulo-, às suas sobrinhas e demais família, mas aos seus queridos alunos,
que nele tiveram um professor raríssimo, as minhas palavras finais são de paz e
de alegria e de entusiasmo. Paz, porque é necessário tranquilizar os corações
(o Fernando merece o seu descanso. O seu corpo lutou dignamente e ganhou, saiu
vitorioso) e alegria e entusiasmo para os dias que o futuro nos reserva, porque
o Fernando estará sempre connosco na sua poesia e a sua obra chegará longe,
assim como a sua memória será, por muitos, celebrada.
Dele eu vou guardar as conversas, os encontros, os cafés, a
mesa cheia de livros e jornais. A sua generosidade para comigo. A sua
benevolência. A sua inigualável coragem e constante amizade. Guardarei também
estas palavras:
As mãos que colheram
verdadeiramente a rosa
Também colheram as tuas
mãos
Eu, das mãos do Fernando, colhi o seu desejo de viver, a sua
serena aceitação do que os dias têm para nós. Ao mesmo tempo colhi o seu
entusiasmo; a sua entusiástica forma de ver que tudo está em tudo, que nada se
perde e em mim o Fernando Carita continuará vivo e estará comigo.
António
Carlos Cortez, Lisboa,
café «Nilo», 22 de Junho de 2013
café «Nilo», 22 de Junho de 2013
Que belo testemunho do António Carlos Cortez sobre o nosso querido colega Fernando Carita! Nele perpassa a "luminosa fraternidade" que de facto nos oferecia nos breves intervalos em que sobre a escola ou sobre a VIDA falávamos. Só um poeta também podia ter escrito sobre a essência doutro ser humano tão sensível, cuja "obra chegará longe". Leonídia Cunha
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