sábado, 30 de maio de 2020

SARA FIGUEIREDO COSTA e ZÉ TAVARES - Diário Encerrado (excerto)



29 Maio

Durante os primeiros dias desta saga pandémica, parecia que o mundo estava suspenso e nada mais se passava para além do passeio aleatório de um vírus pelas esquinas. Ilusão, claro. O mundo continuou, no seu melhor e, sobretudo, no seu pior. As imagens de um polícia norte-americano ajoelhado sobre o pescoço de um homem, desarmado e imobilizado, que acabaria por morrer pouco depois, lembraram com toda a violência que nunca nada pára para dar espaço ao que possa ser novo. George Floyd é o nome desse homem que esteve nove minutos a implorar ao polícia que o deixasse respirar. George Floyd era um homem negro, o polícia é um homem branco. Vivêssemos num mundo onde o racismo não é estrutural e a cor das suas peles seria um detalhe absolutamente irrelevante. Não é irrelevante, é toda uma história a ser repetida em tantos sítios, sobretudo nos bairros e comunidades mais pobres, nos EUA como aqui. Um branco suspeito de um crime é um suspeito, um negro nem precisa de ser suspeito, é já um criminoso a quem a cor da pele extingue imediatamente os direitos básicos de qualquer cidadão – nomeadamente o de não ser violentado pela polícia, independentemente de vir a comprovar-se que cometeu algum crime. Isto devia ser básico e não é. George Floyd agonizou debaixo do joelho do polícia enquanto pedia para respirar, enquanto se queixava das dores, enquanto morria. Morreu ali, quase em directo para a internet, o que torna tudo mais pérfido: ainda bem que alguém registou o momento, claro, ou seria impossível pedir contas aos responsáveis, mas esta é uma história que se repete longe da vista geral. Há vários George Floyd por esse mundo cujas mortes, espancamentos e outros mimos às mãos de agentes que nunca deveriam ter chegado a autoridade não nos passam pela vista. E há demasiadas presenças da extrema-direita nas forças da ordem (uma só já seria demais), demasiados discursos racistas disfarçados de preocupação social, demasiadas desculpas para não se assumir que o básico são os direitos humanos, iguais para toda a gente. Mesmo iguais.



« Faz hoje dois meses que começámos este exercício diário de olhar para o mundo a partir de casa e contá-lo em textos e imagens. Quem diz o mundo, diz a nossa própria cabeça. Não sabíamos bem se íamos ser capazes de o fazer diariamente, nem por quanto tempo, e ainda menos se íamos ter leitores. Passaram dois meses, já não estamos exactamente confinados, mas mantemos o ritmo e a vontade. Enquanto assim for, andaremos por aqui, sem compromissos de prazos ou objectivos. Para assinalar estes dois meses, fizemos um pequeno livro em versão digital com uma selecção de textos e imagens, escolhidos entre aqueles que mais gostámos de fazer. Fica aqui, para quem quiser: DIÁRIO ENCERRADO    »

Sem comentários:

Enviar um comentário