sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Cardeal Tolentino de Mendonça e Professor Eduardo Lourenço - Homilia das cerimónias exequiais

Na verdade, Eduardo Lourenço não morreu. Revive e encandeia com palavras, reflexões e pensamentos que nos obrigam também a amadar os nossos horizontes com maior lucidez. Sejamos
inteligentes, ele merece.
José Maria Laura
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Estamos aqui num dos mais emblemáticos lugares portugueses, neste “jardim de pedra” como um dia Eduardo Lourenço chamou ao Mosteiro dos Jerónimos; estamos aqui mulheres e homens, crentes e não crentes, no contexto desta liturgia cristã para expressar a mais comovida gratidão pela vida de Eduardo Lourenço.

[...]

Há lutos que se vivem no domínio pessoal, pois dizem respeito à nossa pequena história. E há lutos que excedem esse domínio, pois se configuram como uma experiência de perda coletiva. Escutando este parágrafo programático de Lourenço percebemos como o seu luto tem para nós essa natureza. Quando morre um escritor, a literatura fica enlutada. Mas também acontece – mais raramente é verdade, mas acontece – que, com alguns escritores, a própria literatura, ou uma ideia de literatura ou uma inteira época da literatura morra com eles. Pois naquele criador que partiu os leitores de uma geração (que até pode ser de uma geração futura) reconhecem uma razão, uma sabedoria, uma verdade ou um fulgor onde se encontraram refletidos, interrogados, transportados a uma fronteira de si próprios e do mistério. Isso que, por exemplo, Pietro Bembo esculpiu tão bem como epitáfio no túmulo do pintor Rafael: “Aqui jaz Rafael, que enquanto vivo a natureza temeu por ele ser vencida; mas que agora morto a natureza teme morrer com ele.” Com razão, todos tememos morrer um pouco na morte deste homem que jaz hoje diante de nós.

Mas ensinar a morrer é, como dizia Cícero, o objetivo do mestre que ensina a filosofia. E Montaigne, o inventor moderno dos ensaios, escreveu que quem aprendeu a morrer venceu a sujeição, ultrapassou já a condição de escravo. A Eduardo Lourenço devemos a lição de interrogar não só a vida, mas também a morte com sabedoria, distanciamento e serenidade, lutando para conter a história nos limites do humanamente aceitável, tarefa como sabemos trabalhosa e inacabada, mas também indeclinável se quisermos que a civilização e o humanismo sejam mais do que uma abstração. A Lourenço devemos além disso uma rara capacidade de cuidar da ideia de comunidade, reforçando sempre o nosso conjunto como nação, elucidando a experiência de bem comum que é um país, indicando a cartografia mental e espiritual sem a qual não se entende a geográfica nem nenhuma outra, mostrando-nos, por exemplo, que todos somos habitantes da solidão de Pessoa e do profetismo de Antero ou de Agostinho da Silva, do levantamento do chão de Saramago e dos acordes insubmissos de Lopes Graça, da religiosidade que uniu Régio e Manoel de Oliveira, dos socalcos durienses de Agustina e da praia lisa que Sophia sonhou. Nos milhares de páginas que escreveu, talvez se veja que a ideia de comunidade foi aquela que afinal ele mais perseguiu e que esta constituiu a sua paixão maior.

Teixeira de Pascoaes, que escreveu Arte de Ser Português, quis ser enterrado num caixão em forma de lira. O caixão de Eduardo Lourenço tem, qualquer que seja a sua forma, a forma de Portugal, do qual ele foi (e será para muitas gerações futuras) um explorador e um cartógrafo, um detetive e um psicanalista do destino, um sismógrafo e um decifrador de signos, uma antena crítica e um instigador generoso e iluminado. Depois dele, todos podemos dizer que nos entendemos melhor a nós próprios.

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Nostalgia de Deus que era também a dele. Um dia na televisão alguém o interrogou: “Professor, o que pensa de Deus?”. E a resposta dele abriu um alçapão, trazendo à superfície aquele arrepio sideral do infinito de que falava Pascal. “Sabe – respondeu ele calmamente –, mais importante do que dizer o que penso de Deus é saber o que Deus pensa de mim”.

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Quem conheceu Eduardo Lourenço ouviu-o certamente rir e sorrir muitas vezes: com os outros, consigo mesmo, com as histórias que contava, com as suas curiosidades, as suas manhas de contador, os seus deleites. E recordará para sempre essa associação entre alegria e sagacidade, entre aquela extrema inocência que nos surpreende nos muito sábios e aquela inimitável ironia que nele era também um modo de maturação e de juízo. A imagem dele a sorrir há de, por isso, acompanhar-nos. Só uma vez o vi chorar. Fiquei completamente desconcertado, porque nada na nossa conversa me alertara para a eminência daquela sua emoção torrencial. Estamos a falar de textos bíblicos, saltando sem cautelas de uma personagem para outra e, de repente, ele tropeçou, como o apóstolo Paulo terá tropeçado, na palavra Jesus. E os seus olhos se encheram de água e a voz de silêncio e soluços. Passou muito tempo para que me dissesse chorando: “Não há nada superior a Jesus. Já imaginou um Deus que diz bem-aventurados os pobres, os humildes, os misericordiosos, os puros de coração, os perseguidos, os que têm fome e sede de justiça, os que promovem a paz. Não há nada superior a isto”.

[...] agradeçamos ao Deus das Bem-Aventuranças as palavras que Eduardo Lourenço nos iluminou sorrindo e aquelas para cujo sentido ele nos abriu chorando.


Homilia na íntegra:

Documento: “As palavras que Eduardo Lourenço nos iluminou” – homilia do cardeal Tolentino

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