segunda-feira, 18 de março de 2024

NUNO JÚDICE (1949-2024)




Rotação

É nos teus olhos.

É nos teus olhos que o mundo inteiro cabe,

mesmo quando as suas voltas me levam para longe de ti;

e se outras voltas me fazem ver nos teus os meus olhos,

não é porque o mundo parou,

mas porque esse breve olhar nos fez imaginar

que só nós é que o fazemos andar.

Pedro lembrando Inês, 2002



Receita para fazer o azul.

Se quiseres fazer azul,

pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,

que possas levar ao lume do horizonte;

depois mexe o azul com um resto de vermelho

da madrugada, até que ele se desfaça;

despeja tudo num bacio bem limpo,

para que nada reste das impurezas da tarde.

Por fim, peneira um resto de ouro da areia

do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.

Se quiseres, para que as cores se não desprendam

com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.

Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez

ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre

na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor

até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.

Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que

possas distinguir entre uma e outra.

Assim o fiz - eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,

iluminador de Loulé - e deixei a receita a quem quiser,

algum dia, imitar o céu.


 Meditação sobre ruínas , 1994


A Vida

A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua

mais que perfeita imprecisão, os dias que contam

quando não se espera, o atraso na preocupação

dos teus olhos, e as nuvens que caíram

mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações

a abrir-se para dentro e para fora

dos sentidos que nada têm a ver com círculos,

quadrados, rectângulos, nas linhas

rectas e paralelas que se cruzam com as

linhas da mão;


a vida que traz consigo as emoções e os acasos,

a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram

e dos encontros que sempre se soube que

se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com

quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo

o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,

sob a luz indecisa que apenas mostra

as paredes nuas, de manchas húmidas

no gesso da memória;


a vida feita dos seus

corpos obscuros e das suas palavras

próximas.

Teoria Geral do Sentimento, 1999


Para escrever o poema

O poeta quer escrever sobre um pássaro:

e o pássaro foge-lhe do verso.

O poeta quer escrever sobre a maçã:

e a maçã cai-lhe do ramo onde a pousou.

O poeta quer escrever sobre uma flor:

e a flor murcha no jarro da estrofe.

Então, o poeta faz uma gaiola de palavras

para o pássaro não fugir.

Então, o poeta chama pela serpente

para que ela convença Eva a morder a maçã.

Então, o poeta põe água na estrofe

para que a flor não murche.

Mas um pássaro não canta

quando o fecham na gaiola.

A serpente não sai da terra

porque Eva tem medo de serpentes.

E a água que devia manter viva a flor

escorre por entre os versos.

E quando o poeta pousou a caneta,

o pássaro começou a voar,

Eva correu por entre as macieiras

e todas as flores nasceram da terra.

O poeta voltou a pegar na caneta,

escreveu o que tinha visto,

e o poema ficou feito.


A matéria do poema, 2008


Jogo

Eu, sabendo que te amo,

e como as coisas do amor são difíceis,

preparo em silêncio a mesa

do jogo, estendo as peças

sobre o tabuleiro, disponho os lugares

necessários para que tudo

comece: as cadeiras

uma em frente da outra, embora saiba

que as mãos não se podem tocar,

e que para além das dificuldades,

hesitações, recuos

ou avanços possíveis, só os olhos

transportam, talvez, uma hipótese

de entendimento. É então que chegas,

e como se um vento do norte

entrasse por uma janela aberta,

o jogo inteiro voa pelos ares,

o frio enche-te os olhos de lágrimas,

e empurras-me para dentro, onde

o fogo consome o que resta

do nosso quebra-cabeças.

A Fonte da Vida, 1997



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