"O Condestável da Liberdade"
24-04-1994 Manuel Alegre
Mas o momento supremo, aquele que verdadeiramente decidiu o destino da revolução, foi esse momento absoluto e raro em que, de granada de mão no bolso, Salgueiro Maia conseguiu a rendição do comandante de Cavalaria 7, que dispunha de forças e meios superiores.
Com esse gesto de uma coragem e de uma beleza sem par, Salgueiro Maia garantiu o triunfo da Revolução de Abril. Foi um só gesto - mas esse gesto pôs fim a meio século de tirania. Foi só um momento - mas esse momento já é História.
Neste tempo de História do avesso, em que há heróis enxovalhados e torcionários promovidos a heróis, inclino-me comovidamente perante a memória luminosa e ímpar de Salgueiro Maia - um dos mais puros heróis militares portugueses de todos os tempos.
Espírito de missão e de serviço, desapego pessoal, coragem, excepcionais capacidades de decisão e de comando - as suas qualidades cedo se revelaram, primeiro em Moçambique, depois na Guiné, onde foi ferido em combate. Tinha todos os requisitos para uma carreira militar distinta que o levaria por certo aos mais altos cargos da hierarquia. Mas Salgueiro Maia não estava fadado para ser apenas mais um, ainda que brilhante, entre outros. Havia nele uma alma de paladino e de cavaleiro antigo. Além de uma forte consciência democrática, reforçada pela convicção de que era preciso encontrar uma solução política para a guerra colonial.
Toda a sua vida foi como que uma preparação profissional e espiritual para um dia, um gesto, um acto decisivo. Como os heróis do Teatro Grego ele estava destinado a aparecer em cena para desencadear a acção, mudar a vida, depois retirar-se e entrar discreta e directamente na História.
Era um homem marcado para uma missão, uma causa, um destino. A missão era derrubar um regime, a causa - a liberdade, o destino - Portugal.
Como diria Fernando Pessoa “claro no pensar, claro no sentir e claro no querer”. A sua vida cumpriu-se num só dia. E esse dia foi o dia das nossas vidas. Da arrancada de Santarém à capitulação da Ditadura, no Quartel do Carmo.
Mas o momento supremo, aquele que verdadeiramente decidiu o destino da revolução, foi esse momento absoluto e raro em que, de granada de mão no bolso, Salgueiro Maia conseguiu a rendição do comandante de Cavalaria 7, que dispunha de forças e meios superiores.
Com esse gesto de uma coragem e de uma beleza sem par, Salgueiro Maia garantiu o triunfo da Revolução de Abril.
Foi um só gesto - mas esse gesto pôs fim a meio século de tirania.
Foi só um momento - mas esse momento já é História.
Um gesto e um momento que fizeram de Salgueiro Maia o novo condestável da liberdade portuguesa. Actos assim pertencem à lenda e ao imaginário de um povo; mas nunca são perdoados pelos medíocres.
Grande na decisão com que venceu, Salgueiro Maia foi grande também na nobreza com que tratou os vencidos. E grande continuou, na modéstia com que se retirou de cena, na recusa de cargos e honrarias, na fidelidade à pureza inicial da Revolução de Abril.
Grande ainda na forma como desprezou a inveja e a mesquinhez, sorrindo por alto e por cima às humilhações e vexames que lhe fizeram.
Salgueiro Maia arriscou sempre tudo e nunca quis nada para si próprio.
Fez frente à doença e à morte com a mesma firmeza de carácter com que na madrugada do dia 25 de Abril partiu de Santarém para Lisboa.
Sabe-se que os deuses amam os heróis e que morrem cedo aqueles que os deuses amam. E sabe-se que homens como Salgueiro Maia suscitam sempre inveja e malquerença.
Faltava-lhe sofrer uma última perfídia e uma última ingratidão: a de ver recusada uma pensão que solicitara, a mesma que seria concedida a dois agentes da PIDE por serviços distintos, que gostaríamos de saber quais foram.
Como diz o poema de Sophia de Mello Breyner:
“Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos”.
Amanhã ninguém saberá o nome daqueles que o maltrataram. Mas enquanto houver língua portuguesa o nome de Salgueiro Maia será sempre sinónimo e símbolo de liberdade.
E por isso esta homenagem nacional deve ser também um acto de inconformismo.
Inconformismo, porque vinte anos depois do 25 de Abril não podemos permitir as tentativas de rever a História e de subverter a memória para branquear a Ditadura e a própria PIDE. É um ultraje à memória de Salgueiro Maia e de todos os portugueses que foram presos, torturados e assassinados para que a liberdade pudesse voltar a Portugal.
Inconformismo contra a mentira, a mistificação e a falta de vergonha.
Mas também esperança e confiança na Democracia e no 25 de Abril.
Esperança e confiança no futuro livre e democrático de Portugal - porque essa foi a causa pela qual, há vinte anos, Salgueiro Maia arrancou de Santarém para conquistar a vitória e entrar na eternidade.
Discurso lido por Manuel Alegre em Santarém, nas Comemorações do 20º Aniversário do 25 de Abril de 1974
AQUI:
http://www.manuelalegre.com/302000/1/002729,000001/index.htm
Ele ia de Santarém
a caminho de Lisboa
não sabia se ganhava
não sabia se perdia.
Ele ia de Santarém
para jogar a sua sorte
a caminho de Lisboa
em marcha de vida ou morte.
E dentro dele uma voz
todo o tempo lhe dizia:
Levar a carta a Garcia.
Ele ia de Santarém
todo de negro vestido
como um cavaleiro antigo
em cima do tanque verde
com o seu elmo e sua lança
ei-lo que avança e avança
ninguém o pode deter.
Ele ia de Santarém
para vencer ou morrer.
AQUI:
http://www.manuelalegre.com/302000/1/002729,000001/index.htm
Poema a Salgueiro Maia
a caminho de Lisboa
não sabia se ganhava
não sabia se perdia.
Ele ia de Santarém
para jogar a sua sorte
a caminho de Lisboa
em marcha de vida ou morte.
E dentro dele uma voz
todo o tempo lhe dizia:
Levar a carta a Garcia.
Ele ia de Santarém
todo de negro vestido
como um cavaleiro antigo
em cima do tanque verde
com o seu elmo e sua lança
ei-lo que avança e avança
ninguém o pode deter.
Ele ia de Santarém
para vencer ou morrer.
E em toda a estrada o ruído
da marcha do Capitão.
Eram lagartas rangendo
e mil cavalos correndo
contra o tempo sem sentido.
E aquela voz que dizia:
Levar a carta a Garcia.
Era um cavaleiro andante
no peito do Capitão.
E o pulsar do coração
de quem já tomou partido.
Ele ia de Santarém
todo de negro vestido.
MANUEL ALEGRE
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