Raças impuras
Os portugueses são, de fato, essa
mistura antiga de árabes, judeus e negros
Assim como os brasileiros gostam
de contar piadas de portugueses, os portugueses gostam de contar piadas de
alentejanos. Os alentejanos são, digamos assim, os portugueses dos portugueses.
Amo o Alentejo. Tenho uma enorme simpatia pelos alentejanos. Se tivesse nascido
em Portugal gostaria que fosse em Évora. As largas planícies alentejanas
lembram, até certo ponto, as savanas africanas. O Alentejo é o único lugar onde
Portugal parece grande.
Durante séculos, o sul de
Portugal recebeu escravos negros. Em 1761, ano em que o Marquês de Pombal
determinou o fim da entrada de escravos em Portugal, ainda haveria pelo menos
cinco mil a trabalhar nas planícies alentejanas. Persistem sinais dessa
presença em alguma toponímia e até em certos nomes de família, de origem banto.
A influência árabe, essa, é
evidente. Inclusive na música. O fado, aliás, está tão próximo de alguma
tradição árabe que há quem junte as duas e é como se sempre tivesse sido assim.
Ouçam por exemplo o jovem Ricardo Ribeiro, cantando, em árabe e português, na
feliz companhia do alaúde do libanês Rabih Abou-Khalil. Ouçam a seguir a
cantora tunisina Amina Alaoui em “Arco-íris”, um dos mais belos discos de fado
que eu conheço.
Pensei nisto tudo no aniversário
de Zambujo, enquanto um grupo de alentejanos, numa mesa próxima, começava a
cantar. Aquele pátio belíssimo podia ser em Tanger. Podia ser em Marrakech ou
em Casablanca. Neste mesmo dia, à tarde, assisti a uma reportagem sobre o drama
dos refugiados sírios. Uma moça de voz estridente, entrevistada na rua,
insurgiu-se contra a possibilidade de Portugal receber alguns desses refugiados
ou quaisquer outros “árabes”, gente, afirmava ela, sem laços de sangue e de
cultura com Portugal. Escutei-a horrorizado. Não há maneira de me conformar com
a ignorância.
Lembrei-me de um episódio que me
contou Mário Soares. Um dia, num encontro que o antigo presidente português
teve com Yasser Arafat, para discutir o interminável conflito israelo-árabe,
este chamou-lhe a atenção para a herança árabe da Península Ibérica: “Vocês,
portugueses, têm de nos apoiar. Afinal, vocês são árabes”.
“É verdade.” Reconheceu Soares, e
logo acrescentou: “Mas também somos judeus”.
Os portugueses são, de fato, essa
mistura antiga de árabes, judeus e negros. Os brasileiros são a mistura, ainda
mais desvairada, de portugueses, africanos, índios, libaneses, japoneses etc.
Um português que odeie “árabes” é um português que se odeia a si próprio. Um
neonazi português ou brasileiro é o mais esdrúxulo, ridículo e repulsivo dos oxímoros.
Contudo — pasme-se! — eles existem. Os comentários nas redes sociais, ou nos
jornais on-line, são uma versão moderna dos antigos gabinetes de curiosidades,
ou quartos de maravilhas, salas onde, nos séculos XVI e XVII, os fidalgos
endinheirados acumulavam coleções de bizarrias, sortilégios e impossibilidades,
como sereias empalhadas, cornos de unicórnios ou lágrimas de crocodilo. Nas
caixas de comentários dos jornais, os prodígios, deformidades e monstruosidades
não são físicos, mas ideológicos e morais. As pessoas exibem ali, com um
estranho orgulho, as suas piores deformidades morais, a estreiteza aflitiva dos
espíritos, as ideias mais monstruosas. Ali está a exaltada patricinha carioca,
defendendo a interdição das praias da Zona Sul aos negros e pobres, ou o operário
lisboeta que quer destruir a mesquita de Lisboa. Há de tudo.
Em Dresden, na Alemanha, um grupo
de neonazis colombianos foi espancado por neonazis alemães quando tentava
juntar-se a uma manifestação contra a entrada de refugiados sírios. Um deles
queixou-se amargamente: “Já não basta que na Colômbia nos chamem morenonazis.
Nós somos de raça pura, sim, apenas escurecemos um pouco por causa do clima”.
É a história do ratinho que
achava que era um gato, até que um gato o comeu.
António Zambujo fez 40 anos. Para
festejar o acontecimento, juntou um grupo de amigos num pátio de Lisboa. Quando
cheguei, o rio Tejo, lá ao fundo, ainda guardava o último fulgor do dia. Era
como um incêndio desaguando na escuridão. A escuridão era o mar. Conheci
António Zambujo em São Paulo. Foi Marília Gabriela quem pela primeira vez me
falou dele: “Você já ouviu um fadista português chamado António Zambujo?” —
perguntou-me. Disse-lhe que não: “Não existe. Se existisse eu saberia”. Então
ela ofereceu-me um disco, era o “Outro sentido”, de 2007, e eu fiquei
maravilhado. Não sabia que havia em Portugal alguém a fazer música assim.
Tentei justificar a minha ignorância: “Você disse-me que era um cantor
português e este António é alentejano”.
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