segunda-feira, 23 de novembro de 2020

HERBERTO HELDER - Eterna a obra

23 de novembro de 1930, Funchal
23 de março de 2015, Cascais

AOS AMIGOS

Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
-Temos um talento doloroso e obscuro.
construímos um lugar de silêncio.
De paixão.

 
A PAIXÃO GREGA

Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela
a paixão grega



A BICICLETA PELA LUA DENTRO - MÃE, MÃE

A bicicleta pela lua dentro - mãe, mãe -
ouvi dizer toda a neve.
As árvores crescem nos satélites.
Que hei-de fazer senão sonhar
ao contrário quando novembro empunha -
mãe, mãe - as tellhas dos seus frutos?
As nuvens, aviões, mercúrio.
Novembro - mãe - com as suas praças
descascadas.

A neve sobre os frutos - filho, filho.
Janeiro com outono sonha então.
Canta nesse espanto - meu filho - os satélites
sonham pela lua dentro na sua bicicleta.
Ouvi dizer novembro.
As praças estão resplendentes.
As grandes letras descascadas: é novo o alfabeto.
Aviões passam no teu nome -
minha mãe, minha máquina -
mercúrio (ouvi dizer) está cheio de neve.

Avança, memória, com a tua bicicleta.
Sonhando, as árvores crescem ao contrário.
Apresento-te novembro: avião
limpo como um alfabeto. E as praças
dão a sua neve descascada.
Mãe, mãe - como janeiro resplende
nos satélites. Filho - é a tua memória.

E as letras estão em ti, abertas
pela neve dentro. Como árvores, aviões
sonham ao contrário.
As estátuas, de polvos na cabeça,
florescem com mercúrio.
Mãe - é o teu enxofre do mês de novembro,
é a neve avançando na sua bicicleta.

O alfabeto, a lua.

Começo a lembrar-me: eu peguei na paisagem.
Era pesada, ao colo, cheia de neve.
la dizendo o teu nome de janeiro.
Enxofre - mãe - era o teu nome.
As letras cresciam em torno da terra,
as telhas vergavam ao peso
do que me lembro. Começo a lembrar-me:
era o atum negro do teu nome,
nos meus braços como neve de janeiro.

Novembro - meu filho - quando se atira a flecha,
e as praças se descascam,
e os satélites avançam,
e na lua floresce o enxofre. Pegaste na paisagem
(eu vi): era pesada.

O meu nome, o alfabeto, enchia-a de laranjas.
Laranjas de pedra - mãe. Resplendentes,
estátuas negras no teu nome,
no meu colo.

Era a neve que nunca mais acabava.

Começo a lembrar-me: a bicicleta
vergava ao peso desse grande atum negro.
A praça descascava-se.
E eis o teu nome resplendente com as letras
ao contrário, sonhando
dentro de mim sem nunca mais acabar.
Eu vi. Os aviões abriam-se quando a lua
batia pelo ar fora.
Falávamos baixo. Os teus braços estavam cheios
do meu nome negro, e nunca mais
acabava de nevar.

Era novembro.

Janeiro: começo a lembrar-me. O mercúrio
crescendo com toda a força em volta
da terra. Mãe - se morreste, porque fazes
tanta força com os pés contra o teu nome,
no meu colo?
Eu ia lembrar-me: os satélites todos
resplendentes na praça. Era a neve.
Era o tempo descascado
sonhando com tanto peso no meu colo.

Ó mãe, atum negro -
ao contrário, ao contrário, com tanta força.

Era tudo uma máquina com as letras
lá dentro. E eu vinha cantando
com a minha paisagem negra pela neve.
E isso não acabava nunca mais pelo tempo
fora. Começo a lembrar-me.
Esqueci-te as barbatanas, teus olhos
de peixe, tua coluna
vertebral de peixe, tuas escamas. E vinha
cantando na neve que nunca mais
acabava.

O teu nome negro com tanta força -
minha mãe.
Os satélites e as praças. E novembro
avançando em janeiro com seus frutos
destelhados ao colo. As
estátuas, e eu sonhando, sonhando.
Ao contrário tão morta - minha mãe -
com tanta força, e nunca

- mãe - nunca mais acabava pelo tempo fora.


NÃO SEI COMO DIZER-TE QUE MINHA VOZ TE PROCURA

Não sei como dizer-te que minha voz te procura 
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite esplêndida e vasta. 
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos 
se enchem de um brilho precioso 
e estremeces como um pensamento chegado. Quando, iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado 
pelo pressentir de um tempo distante, 
e na terra crescida os homens entoam a vindima 
- eu não sei como dizer-te que cem ideias, 
dentro de mim te procuram.
Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.
Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço –
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega 
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
que te procuram.


ANNE-LAURE CROS - «Remparts»

 « À l'heure où les librairies sont considérées comme des commerces non essentiels, je vous partage "Rempart", ma bibliothèque-muraille. Chaque brique peinte représente un livre ayant subi la censure d'une autorité. Alice au pays des merveilles, Tartuffe, Madame Bovary, Lolita... et tant d autres.»

Anne-Laure Cros





sábado, 21 de novembro de 2020

(E)terna gratidão

                                                                  À Dona Emília, a nossa Mila
2002

Já sabíamos a crueldade da pandemia que, há longos meses, não permite uma presença física, um carinho mais aconchegado. Hoje, pela primeira vez, sentimos profundamente a sua crueldade: nem sempre poderemos acompanhar Amigos numa última despedida…

Querida Dona Emília, fica aqui um sorriso antigo que nunca se apagou com o passar dos anos…

TERNO como o colo que ofereceu à nossa Mariana,

ETERNO como as escoras de bondade que sempre ergueu pelos lugares que povoou.

Entre tantas recordações, guardaremos preciosamente a alegria do nosso último encontro no patamar da vossa casa: a Dona Emília sorridente ao lado do Senhor Rocha, seu companheiro de mais de sessenta anos.

Querida Dona Emília, continuará a doer a imagem das suas mãos estendidas num esboço de abraço, logo recolhido… As máscaras e a distância física imposta pelas circunstâncias nunca apagarão a doçura do seu olhar, que continuará, entranhada na nossa Memória.

Mariana, José Maria e Maria Laura 

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

NATAL!

Histórias Que Nos Unem 
Disney

 
Este Natal vai ser diferente para que volte a ser igual.
Bertrand Livreiros 


A Carta
Coca-Cola 

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

VHILS na Lourinhã - Uma homenagem de mar e pedras de palavra!

 Quando as ondas misturam as letras de MAR e VHILS , é MARaVILHoSo!

Para partilhar esta emoção de maresia estilhaçada, fizemos capturas de ecrã, reproduzimos a citação escolhida pelo próprio Vhils e deixámos o vídeo desta  homenagem ímpar. 

Vhils esculpiu na pedra o vaivém das palavras disseminadas pela obra de Saramago.

José Maria Laura








"Quantas vezes, para mudar a vida, precisamos da vida inteira, pensamos tanto, tomamos balanço e hesitamos, depois voltamos ao princípio, tornamos a pensar e a pensar, deslocamo-nos nas calhas do tempo com um movimento circular, como os espojinhos que atravessam o campo levantando poeira, folhas secas, insignificâncias, que para mais não lhes chegam as forças, bem melhor seria vivermos em terra de tufões.” 

José Saramago, A Jangada de Pedra

Vídeo AQUI

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Quando soltares a tua alma...

 
Fotografia - José Maria Laura


MAN - L' Amérique retient son souffle


SIMON O'ROURKE - Giant Hand of Vyrnwy

« Giant Hand of Vyrnwy – Comprising of a single giant hand in an existing tree stump. Height – 50ft total including tree stump. (...)

I found out through a friend that the tallest tree in Wales had been storm damaged and was due to be felled, and that Natural Resource Wales who were in charge of the site, were going to commission an artist to carve the tree.

I searched the internet for the right person to talk to, and on finding them, I got permission to submit a design!»


 

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

JORGE DE SENA - Zodíaco e JOSÉ MARIA SILVA

Trás-os-Montes, anos 70
Fotografia de José Maria Silva


Os deuses nascem quando a vida estreita
laços de olhar, em torno da memória;
lembrar com medo é refazer a história
de quantos deuses uma estátua é feita.

Surgem desígnios que a morte ajeita
ao jeito permitido... Sim ! Devore-a
a pura terra em água mais eleita,
que, ao chamar gruta à solidão marmórea

dará, e a Deus, um cântico e um destino.
Se foi impunemente que menino
me demorei no tempo e não perdi

o bibe sujo que ficou como era,
tenho maior direito ao que se espera:
criei constelações e nunca as vi.


Poesia-I
Círculo de Poesia - Moraes Editores, 1977

JORGE DE SENA 
(2 de novembro de 1919 - 4 de junho de 1978)