até para além do infinito
José Maria Laura
3
A caminho, a casa
0.1
Qual a direcção exacta
Para permanecer agora fora do encalço crescente
Do deserto ?
De onde começar a viver ?
De onde começar o caminho ?
A quem oferecer o meu jejum
E a minha sede ?
A quem doar
O meu único pão ?
A quem legar
A minha casa ?
E quem há-de depois ficar
Para cuidar apenas dos lírios póstumos
Do meu jardim ?
Fotografia de JoséMariaLaura
*
« Vivre sans vivant, comme mourir sans mort:
écrire nous
renvoie à des propositions énigmatiques »
Maurice Blanchot
Para
António Ramos Rosa
Continuava
a insistir do fundo estreito da queda
Essa
mais íngreme voz
Que
não terei por certo caído ainda o suficiente
À
medida imposta pelo silêncio para a trasladação da palavra ao
dizer,
Sempre
um melro precede por cada morte mais recuada
A
abnegação do seu próprio canto,
Tempo
recobrado e agora devolvido às palavras
Como
animais despertos e crucificados
À
tua única ferida sempre fiel que nada te havia prometido,
Não
por uma qualquer fala tua chegarei a
reconhecer-te
Nem
mesmo em redor da tua voz que ignora o teu primeiro nome,
Não
porque não vejas ainda as coisas já todas
acontecidas
Deverás
presumir que não terão porventura acontecido,
Tudo
aconteceu, apenas não adveio,
Tudo
aconteceu já até ao último instante,
Tudo
aconteceu já até ao último melro
E
a vida toda afinal tão-só para poder ouvi-lo
Porque
ver crescer a árvore é ofício clandestino do relâmpago;
E
são os cães então cegos a regressar do futuro com a ossatura
Fissurada
Dos
teus passos perigosamente reclinados
Sobre
um espelho surdo-mudo com imagens
Iminentes
porém de advento numa consumada anterioridade
futura,
Estão
os poetas também desmesuradamente atentos
Em
agudas intenções de descida;
A
uma janela que é futuro em relação ao resto da casa
Riposta
a sombra de uma árvore
Faltando-lhe
apenas advir o melro
A
uma distância de três manhãs consecutivas
Só
para te confirmar e desnomear.
*
Sempre
mais improvável cada dia
Que
sare sobre o olhar essa cicatriz aí abandonada por um mero
descuido
Da
morte em suas manobras quotidianas de extracção de luz e
abismo,
Descias
entretanto por noite escura um caminho estreito sem
sinalização
adequada
De
estar a vida ainda em fase terminal de reparação;
Algures
já só o som estridente de uns dados a rolar até
à
exaustão
De
suas premeditadas combinatórias,
Sem
outra alternativa que não seja participares também tu desse jogo
clandestino,
Em
vez de dados terias de lançar as mãos
Perante
a indiferença altaneira
De
teus parceiros,
O
deus e também a sua ausência agora em incestuosa cumplicidade
Furiosamente
atirando uns contra os outros seus viciados eternos
dados,
De
um único lance se te exige que obtenhas agora
De
cada dado essoutro rosto sempre oculto
Apenas
com uma simples trajectória da mão no vazio de um
tabuleiro
paralelo;
Para
sempre mudo se ganhares,
Para
sempre silencioso se perderes,
Em
ambos os casos
O
deserto.
LA MAISON, LE CHEMIN
A Casa, o Caminho
Édition bilingue
Le Taillis Pré, 2008
AQUI: